Recursos Boletim das Missões Civilizadoras
1920
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1921
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1922
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1923
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1924
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1925
22 - Janeiro | 23 - Fevereiro-Junho | 24 - Julho-Outubro
Nota Histórica
O Boletim das Missões Civilizadoras, editado pelo Instituto de Missões Coloniais, veio a lume em Abril de 1920 e saiu com regularidade até Outubro de 1925. Os 24 números publicados ao longo destes cinco anos e meio foram cedidos pela Sociedade Missionária da Boa Nova à Universidade Católica Portuguesa para efeitos de digitalização e de divulgação, o que agora se faz.
O Decreto fundador do Instituto de Missões Coloniais, de 8 de Setembro de 1917, prescrevia no artigo 18º: «O Instituto publicará um boletim destinado à propaganda da nossa acção civilizadora, a tornar conhecidos os trabalhos dos nossos agentes e à discussão dos altos problemas de colonização. Será dirigido pelo director, com a colaboração obrigatória de todos os professores». Acabou por ser «demorada a sua publicação por motivos de ordem vária», só vindo a público em Abril de 1920, como se referiu, e dirigido pelo Dr. Abílio Corrêa da Silva Marçal.
Composto e impresso na tipografia do Instituto de Missões Coloniais, vulgo Instituto de Missões Laicas, em Cernache do Bonjardim, o Boletim das Missões Civilizadoras divulgou informação pormenorizada sobre o funcionamento das ditas missões, sobre as dificuldades várias que estas encontraram, sobre os problemas de logística e outros com que os agentes civilizadores se debateram na fase de implantação nas colónias. De tudo encontramos relatos vivos, redigidos pelo punho dos que intervieram no terreno. Houve, de facto, grande cuidado em fazer um acompanhamento exaustivo das situações, através deste boletim informativo que funcionava também como elo de ligação entre a direcção e os diversos membros espalhados pelas colónias onde se exercia a acção civilizadora.
Tratando-se de um instrumento de divulgação da acção civilizadora desenvolvida pelos agentes formados no Instituto de Missões Coloniais, parece-nos de algum interesse dar conhecimento aos leitores sobre o que eram as ditas Missões Civilizadoras bem como sobre a fundação do Instituto de Missões Coloniais. Para nos situarmos no contexto em que ambos surgiram, recuemos aos primórdios da República.
1 - A república e a laicização do ensino. A exemplo dos políticos franceses da III República, os republicanos portugueses fizeram da escolarização a grande prioridade. Herdeiros dos iluministas, entendiam que só a educação, em moldes novos, encaminharia os povos para as Luzes.
Insistindo na necessidade e urgência de resolver o problema cultural do país, o novo regime apresentava a religião católica como responsável pelo atraso. A construção de uma sociedade nova passaria, numa primeira fase, por um combate cerrado à influência nefasta da Igreja, remetendo para a esfera privada qualquer prática religiosa. Havia que transformar as escolas em centros de mobilização e de propaganda dos ideais republicanos, mas à margem de quaisquer influências religiosas.
Um decreto do Governo Provisório, de 29 de Março de 1911, sobre a instrução primária, proclamava que a escola seria uma verdadeira «oficina em que se fabrica o cidadão». A educação era vista como uma «engenharia de almas». Para tanto, o regime confiava na escola universal, obrigatória e neutra. Entendia-se que qualquer escola confessional ia contra os direitos dos educandos e contra a liberdade de consciência. Só a escola neutra permitiria a emancipação da criança. O ensino da religião católica foi erradicado das escolas e, em substituição, o regime pretendeu introduzir a educação cívica na sociedade: na família, na Pátria, na humanidade. Nesta trindade, a Pátria ocupava a posição cimeira.
A República reorganizou assim o ensino tendo como um dos objectivos principais transformar as escolas em instrumentos de laicização da sociedade. Laicização imprescindível para a construção do homem novo. O laicismo apresentava-se como um projecto político que visava conter, refrear as emoções religiosas do povo, reorientando-as para a nação na sua versão republicana.
2 - A extinção do Colégio das Missões Ultramarinas. Como era de esperar, a onda de laicização que varreu o ensino, considerava os seminários uma aberração. A imprensa afecta ao regime chamava-lhes «casas de horrores», «centros de tortura espiritual» e incitava os alunos a manifestarem-se. Foi assim também com o Colégio das Missões Ultramarinas, de Cernache do Bonjardim, vulgarmente conhecido como Real Colégio das Missões. Mandado fundar pelo príncipe herdeiro e futuro rei de Portugal, D. João VI, por Decreto de 10 de Março de 1791, para formar clero para as igrejas do Priorado do Crato, funcionava agora na dependência do Ministério das Colónias, preparando pessoal missionário para os territórios ultramarinos do Padroado. Regia-se por estatuto próprio, fixado por Sá da Bandeira, em 12 de Agosto de 1856.
O ano lectivo de 1910-1911 foi muito agitado no Colégio de Cernache do Bonjardim, por razões diversas. A Lei de Separação entre o Estado e a Igreja, publicada em 20 de Abril de 1911, no seu artigo 189º autorizava o governo a reformar os serviços do Colégio das Missões Ultramarinas. Por portaria de 29 de Dezembro do mesmo ano, foi nomeada uma comissão para estudar a situação do Padroado Português do Oriente e preparar as bases da reforma das Missões Ultramarinas e do Colégio de Cernache. Das teses então apresentadas, logrou vencer a do Dr. Abílio Corrêa da Silva Marçal, muito próximo de Afonso Costa, desde os tempos de Coimbra. Em 16 de Março de 1912 foi emitido um parecer por aquela comissão, no sentido de transformar o Colégio de Cernache do Bonjardim em Colégio das Artes, e criar na capital o Instituto das Missões. Cerca de um mês depois, em 12 de Abril de 1912, tomou posse como director do Colégio um oficial da administração militar, o capitão João Baptista Valente da Costa. Um grupo de seminaristas, aliciados com promessas de emprego, assinaram um documento declarando que desistiam da carreira eclesiástica, e, em sequência, o curso de Teologia que preparava padres para as Missões do Padroado, foi extinto. Mas o destino a dar ao Colégio das Missões Ultramarinas continuava envolto em polémica, e esta indefinição levou Afonso Costa a visitar Cernache do Bonjardim, em Abril de 1913, para se inteirar da situação no terreno, e para poder decidir sobre as reformas que lhe vinham sendo propostas pelo seu colaborador e amigo Abílio Marçal.
3 - A criação das Missões Civilizadoras. Entretanto, agudizou-se a crise diplomática com o Vaticano. A 10 de Julho daquele ano de 1913, foram cortadas relações diplomáticas com a Santa Sé e extinta a embaixada portuguesa no Vaticano. E logo em 22 de Novembro do mesmo ano, pelo Decreto nº 233, o ministro das Colónias, Dr. Almeida Ribeiro, tornou extensivas às colónias as disposições da Lei de Separação. O artigo 19º do referido Decreto autorizava a criação de Missões Civilizadoras nas províncias de Guiné, Angola, Moçambique e Timor, «com absoluta exclusão de qualquer ensino ou propaganda de carácter religioso». Missões Civilizadoras passou a ser a nomenclatura oficial das Missões Laicas, visando uma mais fácil aceitação junto do público.
4 - A criação do Instituto de Missões Coloniais. Foi com alguma hesitação que Afonso Costa avançou para este projecto inédito e radical das Missões Civilizadoras. Por ser inédito e radical, o governante nunca terá convencido os seus pares. A própria França revolucionária não fora tão longe com as suas Missões Religiosas (que continua a apoiar ainda nos nossos dias). O diploma foi, de facto, aprovado em 22 de Novembro de 1913, mas o passo seguinte só foi dado quatro anos mais tarde.
Elaborado numa fase de pronunciado anticlericalismo, este diploma revela contudo, a atenção que se prestava ao problema das colónias, bem como a importância que se dava às missões como factor de colonização. Sabe-se também, como já se referiu, que a decisão foi contestada mesmo dentro do governo. E, entretanto, a estrela de Afonso Costa começava a declinar. O descontentamento alastrava-se, sobretudo devido à guerra, à carestia e ao racionamento. Estranhamente, foi nesta fase de abrandamento do ímpeto revolucionário, e depois de algumas hesitações, que Afonso Costa acabou por criar o Instituto de Missões Coloniais. Em 8 de Setembro de 1917, pelo Decreto nº 3352, reformou o secular Colégio das Missões Ultramarinas, que passou a denominar-se «Instituto de Missões Coloniais»: «escola de educação de alunos com destino ao serviço das colónias, como agentes de civilização». Ali passaria a receber formação o pessoal que ia constituir as Missões Laicas, criadas quatro anos antes. Era ainda ministro das Colónias o Dr. Artur R. de Almeida Ribeiro.
No mês seguinte, em 19 de Outubro, foi publicado o Regulamento do Instituto (Decreto nº 3469). Com estes dois diplomas, o regime assumiu a ruptura em relação às políticas que vinham sendo adoptadas para as missões católicas ultramarinas e propôs uma alternativa de algum radicalismo, no quadro do colonialismo europeu. Um momento marcante na afirmação do republicanismo em Portugal.
Entretanto e em contraponto com estas medidas, logo em 1918, o Governo deu sinais de querer arrepiar caminho. É que em 5 de Dezembro de 1917, Sidónio Pais, aproveitando um momento em que a popularidade de Afonso Costa batera no fundo, derrubou o Governo. E assim, em 10 de Julho de 1918, deu-se o reatamento das relações diplomáticas com a Santa Sé, e face à «desnacionalização» que crescia nas colónias, o Governo passou a garantir um certo apoio às Missões Católicas, criando embaraço ao projecto das Missões Laicas. De facto, em 1919, embora estas continuassem apoiadas, havia já tendências novas na legislação missionária. O Decreto nº 5239, de 8 de Março de 1919, assinado pelo ministro das Colónias, comandante José Carlos da Maia e o Decreto nº 5778, de 10 de Maio de 1919, assinado pelo seu sucessor, Dr. João Lopes Soares, são prova disso.
Depois de tergiversar durante tanto tempo, no dia 7 de Abril de 1920 - ano em que o país conheceu sete novos governos - partiram de Lisboa, com destino a Luanda, as duas primeiras Missões Civilizadoras: a Missão "Cândido dos Reis", e a Missão "Cinco d`Outubro". Abílio Marçal, Director do Instituto que as formou, registou, amargurado: «Após nove anos de trabalhos persistentes, em lucta por vezes com portugueses ao serviço do estrangeiro …». Entretanto, seguiram para Moçambique, a Missão Civilizadora "Camões", a Missão Civilizadora "Pátria", e a Missão Civilizadora "República".
«As nossas missões teem um duplo encargo - civilizar e nacionalizar - sem deixar nunca de ponderar, e com muita atenção, as resoluções da Conferencia de Berlim, de 1885, e da Convenção de Bruxelas, de 1890, e mais recentemente as da Conferencia da Paz», explicava o incansável e inconformado Abílio Marçal. Porém, do Decreto nº 300, de 20 de Maio de 1923, do Alto Comissário Norton de Matos, transparece ainda alguma indefinição, quanto aos objectivos. Mas já era tarde.
5 - O Boletim das Missões Civilizadoras. A figura do director - O ideal romântico deste projecto grandioso que se propunha levar aos povos do ultramar os grandes valores republicanos da solidariedade e da filantropia, é realçado no primeiro número do Boletim das Missões Civilizadoras: «educar o preto pelo trabalho e ensinar-lhe a língua portuguêsa é já uma grande obra de civilização, e não nos parece que para realizá-la seja forçoso ou sequer avisado recorrer às ordens monásticas. Não carecemos de nos inspirar no espírito religioso: bem nos basta o sentimento patriótico convenientemente educado». Era com este entusiasmo e convicção que escrevia o director. Trata-se de uma figura interessante. Abílio Marçal é mesmo a figura central de todo este sonho que começava a concretizar-se no início dos anos vinte, e que acabou por desintegrar-se quando parecia ganhar algum espaço e expressão.
Abílio Corrêa da Silva Marçal foi Director do Instituto de Missões Coloniais e do respectivo Boletim das Missões Civilizadoras, desde a fundação. Concluída a formatura em Direito, dedicou-se à advocacia e militou no Partido Dissidente Progressista, ao lado de João Pinto dos Santos e José de Alpoim. Implantada a República, filiou-se no Partido Democrático, ao lado de Afonso Costa, de quem foi amigo dedicado. Em 1917 foi escolhido para Secretário do Governo e exerceu o cargo de Presidente da Câmara dos Deputados, recusando em várias ocasiões, o lugar de ministro para o qual várias vezes foi indicado e que lhe foi oferecido com insistência.
6 - O fim de um projecto - Folheando o Boletim das Missões Civilizadoras, apercebemo-nos de que a escrita de Abílio Marçal se tornava mais ácida à medida que o tempo ia correndo. Parecia inconformado, ora contrapondo ora atacando. Havia indícios claros de que o projecto estava a falhar. Queixava-se da falta de aceitação e até da hostilidade das autoridades. Os missionários laicos «não são párias - tão funcionários como os dos outros quadros; tão portugueses como eles». E continuava: «Se as missões laicas não progridem, se elas não realizam o objectivo para que foram criadas, a responsabilidade é dos governantes que não lhes dão o acolhimento e o apoio necessários, e chegam mesmo a hostilizá-las». Como Procurador-Geral das Missões Laicas, constatava que estas não tinham nas colónias a aceitação esperada. Vivia amargurado porque se apercebia de que o projecto a que dedicara a vida estava bloqueado, não tinha saída. Assim escrevia em 14 de Maio de 1925. Quando, um mês depois faleceu, com 58 anos, o projecto das Missões Laicas, que acarinhou desde 1911, estagnou. E o último número do Boletim das Missões Civilizadoras, que Abílio Marçal fundou e dirigiu, aparece datado de Julho de 1925.
Em Abril de 1926, um mês antes do golpe militar liderado pelo general Gomes da Costa, o ministro das Colónias, general Ernesto Maria Vieira da Rocha, ordenou um inquérito ao Instituto. A comissão, de que fazia parte, como relator, o Prof. Doutor José Gonçalo da Costa Santa Rita, concluiu que o Instituto não correspondia aos fins para que fora criado. Sobre a organização e funcionamento dos serviços administrativos e pedagógicos, escreveu que «tudo é um caos». É demolidor o relatório. A. da Silva Rego escreve que os motivos que originaram o inquérito têm a ver com a criação da secção feminina do Instituto, em casas vizinhas (Decreto nº 8449, de 2/9/1922). O Instituto acabou por ser extinto pelo Decreto nº 12886, de 24 de Dezembro de 1926, quando já era ministro das Colónias o comandante João Belo.
7 - Para uma leitura crítica. Alguns tópicos - Eivadas de alguns excessos de idealismo, as Missões Laicas, actuando num espaço temporal muito limitado, e enfrentando dificuldades e limitações várias, lograram contudo alcançar alguns resultados. Os mapas do movimento escolar nas escolas das missões e nas respectivas sucursais, são testemunho do enorme esforço empreendido, quer na área da instrução quer na da educação cívica. Contribuíram decisivamente para a implantação de oficinas, de enfermarias, escolas, internatos, graças ao zelo republicano com que se dedicaram à causa da civilização, recorrendo por vezes aos seus parcos vencimentos.
Diversos factores contribuíram para o fracasso do projecto, incluindo a vindicta partidária. Também a lógica subjacente ao funcionamento das Missões Civilizadoras ou Laicas se revelou inadequada. No essencial, reproduziram a organização das Missões Católicas que se propunham substituir, e isto tanto no plano da estrutura organizacional, como no plano do funcionamento. A tentativa de integrar indivíduos casados nas Missões Civilizadoras, pelo exemplo de família que se pretendia transmitir, e pelo sucesso que as Missões Protestantes pareciam exibir, revelou-se astuciosa, mas algo ingénua. Exigiu-se demais aos agentes de civilização, e recusou-se-lhes apoio e recursos compatíveis. Apesar do empenho e dedicação que transparecem das páginas do Boletim das Missões Civilizadoras, o grande projecto de civilização republicana para as colónias, ruiu com a morte do seu mentor.
Lisboa, Julho de 2011
Amadeu Gomes de Araújo
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